Por que o Brasil é tão diferente da Argentina, nosso vizinho, e dos EUA, se somos todos “americanos”? O presente não existe isolado no tempo; ele não é “dado”, e sim construído através de fenômenos sociais, tecnológicos e ideológicos. Se queremos responder por que a vida é, hoje, da maneira que é, devemos olhar para a História a fim de entender como o passado moldou o presente e moldará o futuro. Conceitos como “belo” e “feio”, ou “ética”, têm variações ao longo do tempo que refletem mais o momento histórico em que foram formulados do que algo relacionado aos conceitos em si.
Modelos de colonização e seus reflexos no presente
Olhando melhor para nossa realidade, sabemos que o Brasil “nasceu” e foi colonizado para abastecer Portugal com recursos naturais como madeira, especiarias, ouro e outros. Já os EUA e o Canadá foram, majoritariamente, colonizados por imigrantes europeus fugindo de perseguições políticas e religiosas. A ideia dessa forma de colonização não era abastecer a metrópole, como no caso brasileiro, mas sim criar um país livre, autossuficiente e com oportunidades para todos.
Avançando alguns séculos após a “descoberta” das Américas, percebemos o Brasil atual como um país exportador de commodities não manufaturadas e importador de tecnologia. Ao mesmo tempo, os EUA são polo produtor de tecnologia e, há anos, são capazes de oferecer e manter o “sonho americano”, gerando uma enorme onda de imigrantes em direção ao país, buscando uma vida melhor.
Se é válida ou não, do ponto de vista da busca pela felicidade, a escolha desse modo de vida americano em detrimento de outros modos de vida, não faz parte da nossa discussão. Estou mais interessado em olhar criticamente para nossa presente realidade, entender como ela se formou e como podemos direcioná-la para um futuro socialmente melhor para nossos descendentes.
Historicismo em ação: Brasil x Argentina
Será que a vida — e a cultura — no Brasil seriam as mesmas caso o modelo de colonização do país fosse outro? Com certeza, não! E isso é o historicismo agindo na realidade. Fica mais claro ainda quando comparamos o Brasil com a Argentina, que teve um modelo de colonização voltado para o povoamento, parecido com os EUA.
A própria urbanização de Buenos Aires, fundada no século XVI para ser um entreposto comercial, quando comparada ao Rio de Janeiro (capital brasileira antes de Brasília), dá um testemunho importante sobre essa realidade. O Rio de Janeiro só passou a ser pensado urbanisticamente a partir de 1808, com a mudança da família real para o país, fugindo das guerras napoleônicas.
Logo em 1822, apenas 14 anos depois, o Brasil declarou sua independência de Portugal e passou o Primeiro e Segundo Reinado combatendo revoltas regionais que surgiram, dentre diversos fatores pontuais, nas elites locais de cada região, insatisfeitas com a falta de integração nacional e a falta de representação regional no governo imperial.
As heranças coloniais e a desigualdade social
As elites locais (tomando a Farroupilha e a Cabanagem como exemplos) perceberam que a independência não libertou o Brasil da condição de subalterno da Europa. Apenas se trocou a submissão a Portugal pela submissão ao capital inglês e a uma elite de nascidos brasileiros descendentes de europeus, principalmente portugueses, que herdaram as posses dos seus pais, transportando as desigualdades sociais do Brasil colônia para o Brasil Império.
Aí eu pergunto: olhando para o Brasil de hoje em dia, você percebe que continuamos enfrentando problemas sociais decorrentes dessa realidade colonial? Em maior ou menor grau, nosso presente é reflexo de todos esses acontecimentos complexos do passado — e fica mais fácil olhar, de maneira crítica, a realidade para mudá-la para melhor quando sabemos desses “ecos” do passado atuando no nosso presente.
Historicismo no comportamento e na cultura
Também podemos observar o historicismo agindo quando olhamos para a cultura e o comportamento dos povos e indivíduos. Para nós, brasileiros, é muito comum dar um abraço, e às vezes até um beijo no rosto, quando somos apresentados a alguém.
Para os japoneses, o toque é algo muito pessoal, e pode causar até espanto para eles receber um abraço de alguém que acabaram de conhecer. A reverência “Ojigi” sempre foi a forma mais comum de cumprimento no Japão, e sua profundidade e duração indicam o nível de respeito demonstrado.
Outro exemplo interessante, em relação à cultura, está nas roupas que usamos. Na região dos trópicos, lugares mais quentes, as roupas são menores, os tecidos são leves e as estampas, coloridas. Em latitudes mais altas, as temperaturas menores obrigam as roupas a serem mais pesadas e também vemos cores mais sóbrias predominando.
A pergunta que surge é: será que a maneira de se vestir é uma escolha livre dos indivíduos, ou a maneira como os povos foram se distribuindo e ocupando historicamente os continentes é mais determinante para suas roupas do que as escolhas pessoais?
Educação e justiça: legados históricos estruturais
O sistema educacional também é influenciado pela evolução histórica da humanidade de diversas maneiras. Aqui no Brasil, nossas escolas são “descendentes” dos colégios jesuítas, que foram os primeiros a serem abertos no país. Essa educação dogmática e religiosa era voltada a formar padres e burocratas, além de cidadãos leais à coroa portuguesa.
Até mesmo depois da proclamação da república, o brasileiro comum ainda tem tido muita dificuldade para ter acesso a um sistema educacional público de qualidade. Estamos discutindo evasão escolar e modernização do currículo em um país onde boa parte dos alunos não têm acesso a um banheiro decente na escola, onde os professores são mal remunerados e desmotivados e onde os alunos, mesmo já alfabetizados, têm enormes dificuldades na interpretação de texto.
O sistema judiciário também é lotado de amostras do historicismo na atualidade. Ele é um sistema distante da população e excludente que beneficia às elites. As primeiras instituições jurídicas do país só foram formadas com a vinda da família real para cá e, desde então, o judiciário se consolidou como um poder de poucos que, antes formados nas universidades européias, agora eram formados no Largo de São Francisco em SP.
A linguagem difícil, a autoridade na figura do vocativo “Doutor(a)” e os ritos complexos são desenhados para intimidar e segregar, e não para acolher. Se você ainda acha que a justiça não é elitista, basta observar os dados socioeconômicos de quem está preso no Brasil e comparar com o perfil de quem consegue responder processo em liberdade, recorrer até as últimas instâncias e receber sentença de prisão domiciliar.
Uma nova consciência histórica
Para a filosofia, uma das condições para que realmente exista a liberdade de escolha para um indivíduo é que essas escolhas não sejam “peças” de um jogo montado por alguém. Nesse caso, só existiria uma “ilusão” da escolha para o indivíduo, pois as próprias alternativas disponíveis são disponibilizadas por interesses além dele.
Nós, como indivíduos humanos e brasileiros, precisamos olhar para a realidade com outros olhos. Devemos analisar nosso presente e moldar nosso futuro baseado nos nossos desejos como pessoas e como país, desafiando o status quo. É impossível fazer isso sem considerar as implicações históricas que formaram nossa realidade.
Famílias, empresas e instituições moldam a maneira como o brasileiro vive desde que esse país nem era um país. Ignorar isso é contribuir para a perpetuação dessa realidade e para um futuro mais obscuro e subserviente para nossos filhos e netos. Que tal inaugurarmos juntos esse novo olhar para nossa história e para o nosso futuro?


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