Platão e a Arte: vale a pena expulsar os artistas para proteger a verdade?

Que Platão é um dos filósofos mais influentes da filosofia ocidental não é novidade para ninguém. A novidade está em um olhar novo sobre um mal-entendido muito comum para quem mergulha em sua principal obra, a República, que é sua relação com a arte. No livro X, ele defende que os poetas devem ser expulsos da cidade, e aí eu pergunto: como pode o filósofo que tanto influenciou a cultura ocidental, inclusive a estética, ser também acusado de censura à arte? Será que Platão era tão amante da razão que ele desprezava as emoções desencadeadas pela arte? A realidade não é essa, e vamos nos aprofundar nesse paradoxo para entender Platão, um pouco sua vida e o papel da arte na sua “cidade ideal”.

Assim como vários filósofos que produziram ao longo de anos, Platão apresenta uma evolução, uma mudança no seu pensamento filosófico ao longo da sua vida e do seu trabalho. As suas primeiras obras são muito ligadas ao pensamento de Sócrates, seu mentor, enquanto as suas últimas obras começam a revelar originalidade dentro da lógica filosófica do pensamento platônico. Muitos consideram A República como a principal obra de Platão, obra essa onde ele conseguiu sintetizar grande parte do seu pensamento e mostrar não só a sua filosofia, mas a sua compreensão sobre o papel dessa filosofia no mundo. A filosofia não deveria ficar confinada às escolas, academias ou discursos especializados. Ela tinha um papel claro na formação e na manutenção da sociedade ideal: contribuir para a formação moral do cidadão. Um conjunto de cidadãos, munidos da razão e usando-a como ferramenta, seriam capazes de implementar na sua cidade uma ordem racional. Assim, seria formada a “cidade ideal”, ou Kallipolis.

O contexto político que moldou sua desconfiança

Para melhorar nossa compreensão sobre Platão, vamos olhar um pouco para a realidade em que Platão viveu? Ele experimentou um momento muito turbulento, localizado entre o apogeu e o declínio do mundo grego e também época de um conflito importante. A Guerra do Peloponeso foi uma disputa militar entre a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, e a Liga de Delos, liderada por Atenas. Praticamente todas as cidades-estado gregas se aliaram a um dos lados, portanto esse conflito teve proporções enormes para a realidade de Platão. A guerra foi vencida por Esparta, que destituiu a democracia de Atenas e instalou o governo dos 30 tiranos. Porém, sua principal consequência foi o enfraquecimento da Grécia como um todo. Platão faleceu poucos anos antes que Filipe II da Macedônia, pai de Alexandre, o Grande, conquistasse a Grécia, se aproveitando desse momento de fragilidade.

Como se não bastasse esse “golpe” para a credibilidade, na cabeça de Platão, do modelo político de uma Grécia unida como povo, mas com autonomia de governo em cada uma de suas cidades, foi também a democracia ateniense que condenou à morte o seu mestre Sócrates. O choque foi tão grande que Platão saiu de Atenas e vagou por várias cidades gregas, chegou a ser capturado e vendido como escravo, até ser comprado e libertado. Somente aí que ele voltou para sua cidade natal, abriu sua escola (a Akademia) e passou a escrever seus principais diálogos.

Nesse ponto, preciso confessar que, enquanto eu escrevia este texto, perdido entre várias lidas e relidas, comecei a me perguntar se seria importante contar toda essa história em um texto que era pra ser sobre Platão e a arte. Será que esse contexto todo é REALMENTE importante para essa relação? Será que só porque eu acho essa história muito interessante eu estou dando um jeito de contá-la? Ou ainda, será que eu quero apenas que todos os meus leitores tenham um pouco de paciência com um dos meus filósofos preferidos? Para economizar palavras: sim, sim e sim!

A realidade é somente uma: sob a ótica moderna, o tipo de governo apontado por Platão como o ideal em A República é autoritário e até mesmo ditatorial. Portanto, para analisar sua obra, e principalmente o episódio da expulsão dos poetas da cidade, de maneira completa e crítica, somos obrigados a conhecer as raízes de sua desilusão com a democracia. Ele defende a monarquia como o modelo de governo “perfeito” e que os reis sejam filósofos, pois somente esses seriam sábios o bastante para governar com a razão e não sucumbir às tentações do poder, brigar entre si por recursos e instalar tiranias. Vocês percebem como esse “modelo ideal” está intrinsecamente ligado a tudo que aconteceu com Platão e com Sócrates?

A arte como risco e como poder

A ironia chega a ser ainda maior quando percebemos que Platão defende expulsar os artistas da sua cidade perfeita não porque ele despreza a arte, mas porque ele acredita que ela é, em suas palavras, “formadora de almas” e teria um potencial mais que atômico (sim, eu sei que ele jamais usaria esse adjetivo) SE utilizada para afastar os cidadãos da verdade. Portanto, há espaço para a arte em Kallipolis, desde que ela seja controlada e tenha seu acesso liberado somente se ela servir para a elevação da alma. Entendeu o que eu quis dizer com autoritário e ditatorial ali em cima?

Agora posso, finalmente, explicar o que é a arte para Platão e por que ela é tão perigosa. Ele dizia que tudo o que vemos, provamos, cheiramos, escutamos e pegamos é apenas uma representação, uma cópia da “verdade”. Nós vivemos no mundo sensível, e a verdade sobre todas as coisas habita o mundo das ideias. Um mundo que nossa alma conheceu antes de nascermos e do qual teria memórias. Essas memórias inspiram tudo o que está manifestado aqui, no mundo sensível.

Arte, mentira e responsabilidade

Com exemplos fica mais fácil: imagine que a ideia perfeita de um cachorro, ou seja, um cachorro no mundo das ideias, é tudo aquilo que define um cachorro e também é comum a praticamente todos os cachorros. Já olhando para a nossa realidade, temos vários tamanhos e cores de cachorro; mais especificamente, olhando para os seres, temos o meu vira-latas, o seu poodle e o pastor alemão da vizinha. Agora, imagine que eu faço uma pintura do pastor alemão da vizinha. Essa pintura está 3x distante da verdade, que reside no mundo das ideias. Isso não seria um problema enquanto esse cachorro estivesse vivo, pois as pessoas poderiam compará-lo com minha pintura e perceber onde eu o apresentei de maneira errada. Mas o que aconteceria se esse cachorro não estivesse mais ali, enquanto a pintura ainda estivesse? As pessoas iriam acreditar que todos os traços representados pela pintura estariam presentes no cachorro real.

Que inofensivo é isso tudo quando a arte representa conceitos como “cachorro”, concorda? E SE a arte passar a representar conceitos como “verdade”, “honra” e “coragem”? Aí fica sério de verdade… É por isso que, expulsando os poetas da cidade, Platão entende estar fazendo um serviço para ela mesma, pois assim as futuras gerações seriam menos propensas a acreditar em mentiras. Me arrepia o quanto a teoria continua atual! Vivemos cercados de poetas modernos, no sentido platônico, que vendem mentiras como verdades. Que ganham milhões em publicidade de um produto que rouba dinheiro dos seus próprios seguidores, que não entrega o que promete e está sempre oferecendo mais um produto que “resolve seu problema em 48 horas” ou até mesmo vivem no online vidas mentirosas somente para “postar e lacrar”.

O desafio: liberdade + responsabilidade

Nossa necessidade atual continua sendo achar uma fronteira segura entre a liberdade artística e a responsabilidade social da obra, seja ela qual for. Essa regra não pode ser definida por um líder autocrata, como defende Platão. Platão nunca foi um inimigo da arte, mas um amedrontado pelo seu poder quando usado para nos afastar da verdade. Expulsar os poetas da cidade é apenas uma forma radical de proteger a todos do seu “poder”.

Nesse momento, quem fica com medo sou eu. Me assusta que precisamos achar uma maneira para a democracia moderna resolver um problema que nem a própria democracia de Atenas, que nos inspirou, conseguiu resolver.


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